Falas para uma evocação compreensiva e emotiva nos 110 anos do aniversário natalício de Afonso de Sousa
AFONSO DE SOUSA (1906-1993), advogado, opositor ao regime do Estado Novo, multi instrumentista, executante de viola e guitarra de acompanhamento, compositor amador de repertório da Canção de Coimbra, poeta, vulto emérito do Primeiro Modernismo da Canção de Coimbra e, no ciclo de revivificação pública do género no após 1974, principal responsável pela fundamentação do conceito Canção de Coimbra (1978 e ss.).
Afonso de Sousa na década de 1980, com sinais visíveis de magreza e envelhecimento após uma cirurgia cardíaca. Fotografia de família, editada em https://familiamathias.wordpress.com/notaveis-de-maceira/.
Afonso de Sousa na biblioteca-escritório da sua residência, Leiria, 24.11.1989, foto de AMN, publicada in Guitarra de Coimbra I, 14.07.2006, http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2006/07/dr.html
I - Um retrato com memória e sentimento
Trois temps brelianos (La valse à mille temps, 1959) que se desdobram em segmentos de vida concorrem para compor o palimpsesto que segue a pretexto dos 110 anos do aniversário natalício do nosso homenageado: 1988-1989 (tempo de recolhas, de entrevistas e de pesquisa), 1990-1991 (tempo de escrita), 1999 (tempo de revisitação e de escrita), seguidos de perplexidades sobre uma conversa inacabada.
Afonso de Sousa, filho de José de Souza, proprietário em Maceira, e de Rosália Coelho de Sousa, nasceu na Quinta do Paraíso, Maceira, município de Leiria, no dia de São João, 24 de junho de 1906 (Sousa: 1989, 9). Seria batizado na igreja paroquial em 4.07.1906. A monarquia constitucional aproximava-se do fim. O progenitor era admirador dos ideais republicanos e do jacobinismo do lente conimbricense e advogado Afonso Costa. Daí a origem do nome popular e do jogo de espelhos Costa/Sousa, por sinal bem patente na caricatura de final de curso.
Em menos de um século, Afonso de Sousa atravessou o que restava da monarquia constitucional, a 1.ª República, a Ditadura Militar e o Estado Novo, tendo ainda tempo para no outono da vida saborear a democracia.
No liceu de Leiria (1915-1923), na FD/UC (1923-1930) e na longa glaciação salazarista Afonso de Sousa fez questão de misturar o seu nome com o do político (Afonso [Costa] de Sousa), manifestando publicamente e através de fino humor a sua adesão à causa republicana e demoliberal.
Era um homem de baixa estatura, cabelos frisados, propenso à calvície e senhor de invejável boa disposição. Na década de 1980 estava completamente calvo, usava espessos óculos de massa e peruca, sofrendo de problemas cardíacos. Um sedutor nato, que facilmente encantava os amigos e as mulheres com o sorriso matreiro, um infindável arsenal de piadas, maneiras gentis, uma cultura assinalável, jeito para os instrumentos musicais, amigo do seu amigo, aprumo moral irrepreensível.
Nos círculos privados, Afonso de Sousa era um homem calmo e de trato agradável. Deslumbrado com a produção poética da Presença, sentia-se mais próximo da sensibilidade ultrarromântica e do decadentismo, apreciando algum repertório do Fado de Lisboa (Nicolino Milano, Ercília Costa) e do Tango.
Praticante do canto coral e da música instrumental, conviva de estudantes musicalmente letrados, Afonso de Sousa não descurava a audição de música clássica. Fez parte de um círculo cultural que tertuliava para ouvir discos e promover discussões sobre as performances vocais e instrumentais das grandes vedetas em catálogo nos twenties.
Era um homem com quem se podia ter uma proveitosa conversa sobre cultura e artes. Seu filho, Afonso de Oliveira e Sousa, considerava-o um romântico incurável. Tinha na sua casa de Leiria bem guarnecida biblioteca de obras literárias e poéticas relacionadas com os presencistas, algumas das quais edições autografadas.
Afonso de Sousa nunca se contentou com o fechamento cultural imposto pelo Estado Novo nem aderiu ao discurso ruralista e regionalista. Abominava o nacional-cançonetismo e a pegada que deixou na Canção de Coimbra entre a década de 1930 e o alvorecer dos fifties.
A sua conta bancária de proprietário e advogado bem-sucedido permitiu-lhe viajar, visitar alguns dos museus mundiais de referência, na Europa, na América e em África, e cultivar uma postura cosmopolita. Afonso de Sousa é bem o exemplo do velho ditado popular, “os homens não se medem aos palmos”.
Sem nunca cair na vulgaridade, Afonso de Sousa falava abertamente e com realismo dos anos da juventude em Coimbra e de algumas estroinices em que tinha gasto parte do muito dinheiro que recebeu pela sua participação em registos fonográficos: a importância da iniciação sexual para se ser plenamente aceite como adulto pela comunidade de pertença, as preocupações com doenças sexualmente transmissíveis numa altura em que a frequência de casas de prostituição era prática generalizada, os exageros de amigos como Edmundo Bettencourt que se foram estabelecer em hotéis.
Do ponto de vista religioso, Afonso de Sousa cultivou um anticlericalismo moderado face ao ultramontanismo romano. No essencial foi um agnóstico que nas reuniões de curso e nos dias celebrativos do antigo estudante de Coimbra aguardava o fim dos ofícios religiosos do lado de fora da porta da capela da UC.
Os seus grandes e estremecidos amigos de Coimbra eram dados ao republicanismo e ao comunismo, tendo cultivado longos e penosos silêncios para não entrar em conflito com os organismos repressivos do Estado Novo. Artur Paredes e Edmundo Bettencourt, assumidamente antifascistas, simpatizantes dos ideários republicano e comunista, sensíveis aos problemas do operariado. Paradela de Oliveira, republicano e democrata, discreto e persistente advogado defensor na barra do Tribunal Plenário Criminal de Lisboa, onde defendeu a causa de Carlos Paredes, que não se livrou de pernoita em Caxias. Considerando este percurso, não causa surpresa encontrar Afonso de Sousa envolvido em sessões de esclarecimento no após 1974 pelo MDP-CDE.
Finda a segunda guerra mundial Afonso de Sousa entusiasmou-se com a possibilidade do regresso de Portugal à democracia e apoiou a candidatura presidencial de Norton de Matos pelos advogados do reviralho.
Ser sociabilitário, Afonso de Sousa viveu em euforia os anos do Liceu de Leiria e o seu tempo de Coimbra. Participou em serenatas de cortejamento, saraus e atos de variedades como poeta-declamador, executante de concertina, guitarra de acompanhamento e violão de cordas de aço e revelou-se um aplaudido showman (stand up comedy). Ficaram célebres as ridentes blagues com que animava os saraus do Orfeon e da TAUC, os aniversários daqueles organismos, as reuniões de curso e os encontros de antigos estudantes de Coimbra. Foi sócio da TAUC e do Orfeon Académico, tendo participado nas récitas dadas por esses organismos em Portugal e no Estrangeiro.
Almejando pleitear no foro, frequentou o curso de Direito entre 1923-1930. Os ensaios, os amigos e as digressões artísticas fizeram com que atraísse a raposa de Minerva, um desaire que se refletiu em acréscimo de despesas familiares.
Como se disse, Afonso de Sousa começou como acordeonista e violonista ainda no liceu. Entre 1925-1926 lançou-se na experimentação dos acordes da guitarra de Coimbra como discípulo de Felix Albano de Noronha (1902-1968), no quarto do seu amigo à rua de S. João. Entretanto tornara-se famoso na Academia por ter sido convidado para acompanhar Artur Paredes com viola de seis ordens numa digressão. Ser admitido no grupo do Paredes era passar de soldado raso a capitão-de-mar-e-guerra. Ao longo de 1926 consolidou a aprendizagem, tornando-se segundo guitarra de Noronha no período 1926-1930.
A utilização da segunda guitarra era tudo menos do que frequente em Coimbra nos inícios do século XX. O mais comum era o guitarrista solista (que dava sempre nome ao grupo) tocar a solo. Alguns solistas admitiam violão e um número diminuto preferia uma segunda guitarra encordoada a bordões (Anthero da Veiga, Francisco Morais). Não muitos anos antes, a TAUC beneficiara de uma mão cheia de guitarristas que promoviam concertos com quatro a seis guitarras, de doze, quinze e dezassete cordas metálicas, algumas inteiramente encordoadas com bordões.
Deve-se aos solistas Artur Paredes e Felix Albano de Noronha a regularização de um segundo guitarra nos seus grupos desde 1926. No grupo de Artur Paredes, primeiro Noronha, depois Afonso de Sousa, finalmente Felisberto Passos. No grupo de Noronha, Afonso de Sousa, seguido de Felisberto Passos. Não é exagero considerar que foi Afonso de Sousa o instrumentista que de forma mais completa e sistemática definiu o papel do segundo guitarra junto de Artur Paredes e Felix Albano de Noronha na abordagem de repertório vocal e instrumental. Como fica escrito noutro local deste texto, Afonso de Sousa assumia-se como segundo guitarra, era nessa função que se sentia confortável e assim fez questão de continuar nos encontros de antigos cultores. Em 1960, numa digressão à Índia, deixou António Pinho de Brojo perplexo ao insistir que participava nos espetáculos com a condição não negociável de ser o segundo guitarra.
Embora assegurasse a guitarra de acompanhamento no grupo de Artur Paredes (1926-1928), Felix Albano de Noronha preferia atuar como solista. A oportunidade de Afonso de Sousa para fazer currículo como segundo guitarra surge em 1926. As grandes editoras internacionais disputam os artistas amadores de Coimbra, pagam bem e asseguram a distribuição dos fonogramas no mercado global. Albano de Noronha, que prepara repertório com o barítono Armando do Carmo Goes, convida Afonso de Sousa para garantir a segunda guitarra. Nesses registos de 1927, o jovem leiriense fará também uma perninha no violão, no acompanhamento de três sonetos, dos quais apenas um viria a ser editado.
Quase em simultâneo Artur Paredes prepara gravações de repertório instrumental para a etiqueta HMV. Não querendo que Felix Albano de Noronha se distinguisse nessas gravações, e porque Noronha não tinha feitio dócil e não se coibia de criticar ou dar sugestões durante os ensaios, Artur Paredes convidou Afonso de Sousa para a guitarra de acompanhamento. Paredes sabia quem estava a convidar. Afonso de Sousa assumia-se como segundo guitarra sem ambições de se guindar a solista e a sua admiração por Paredes era tal que em momento algum dos ensaios e gravações deu uma nota que pudesse beliscar o temperamento irascível do seu idolatrado mestre.
A história destes registos fonográficos é suficientemente conhecida. Foram pagos cachés de luxo a jovens artistas amadores, que no futuro não seguiram carreira profissional na área. Artur Paredes gravou provas atrás de provas, obcecado com a versão que considerava ser a mais perfeita.
Nem tudo o que foi gravado chegou a ser comercializado. Resta saber por que motivo as editoras HMV e Columbia não apostaram a sério na gravação dos lieder com violão. Não custa admitir que Avelino Correia (2014) tenha razão, quando interpreta que as editoras se terão retraído com receio de legitimar uma Canção de Coimbra que não se pretendia que fosse reconhecida nos catálogos fonográficos.
Uma coisa é bem certa: o soneto gravado por Bettencourt com violão de Mário Faria da Fonseca não foi editado; dos três sonetos gravados por Armando Goes com violão de Afonso de Sousa, apenas um viu a luz do dia; a totalidade das gravações de D. José Pais, que também incluíam sonetos, pura e simplesmente não chegou a ser comercializada. A crise económica de 1929-1932, que já tem sido convocada para justificar a retirada da música de Coimbra dos catálogos fonográficos, é um argumento a reavaliar. Houve marcas que foram compradas e integradas noutras empresas, as matrizes sonoras que estavam nos arquivos não foram destruídas no curto prazo (ao contrário de Espanha, onde se perderam arquivos sonoros nos anos da guerra civil) e a atividade editorial continuou a operar no mercado português na década de 1930.
Jogando pelo seguro e usando da violência simbólica que o poder financeiro e a publicidade lhes permitiam as editoras insistiram na manutenção da Canção de Coimbra no rótulo do Fado, negando-lhe assim a autonomia estética que se tinha vindo a tornar uma questão central nos debates dos cultores mais intelectualizados como Edmundo Bettencourt ou na vivaz discussão espoleta pela receção ao modus faciendi de Artur Paredes.
O primeiro modernismo da Canção de Coimbra como suporte musical do movimento da Presença era algo difícil de compreender e de aceitar à luz de critérios de utilização orientados para o consumo de massas (Nunes: 1999).
Paisagem sonora da Canção de Coimbra, boa poesia e movimentos literários só voltarão a encontrar-se nos sixties, de novo com as elites literárias portuguesas, marcadas pelo imaginário e léxico do Fado, a incompreenderem a fala da segunda modernidade.
Entre 1927-1930, Afonso de Sousa grava repertório próprio como solista de guitarra de Coimbra, participa nas gravações de Artur Almeida d’Eça, nos segundos registos de Edmundo Bettencourt e acompanha duas séries não comercializadas de Noronha. São anos de euforia, que coincidem com o desinvestimento no curso de Direito, o inebriamento do sucesso nos palcos e a assinatura de obras como Asas Brancas (Quando era pequenino a desventura) e Variações de Coimbra. A guitarra de Coimbra utilizada por Afonso de Sousa nas duas peças instrumentais em que é solista testemunha excelente sonoridade e banzo timbre. Afonso de Sousa conseguiu o impossível, convenceu Artur Paredes a emprestar-lhe a sua guitarra de concerto, uma Raul Simões topo de gama.
Em vésperas de receber a sua carta de curso, Afonso de Sousa era um estudante respeitado na Academia que, entre múltiplas atividades culturais, tinha publicado um livro de poemas (Farrapos: 1928). Esteticamente, a sensibilidade de Afonso de Sousa dividia-se entre uma inteligência emocional enraizada no Ultrarromantismo literário e musical e uma inteligência racional que o empurrava para as propostas lideradas por Edmundo Bettencourt, Artur Paredes e D. José Pais de Almeida e Silva.
Afonso de Sousa termina o curso em 1930. Arruma a mala, faz ainda algumas presenças nos palcos e nas serenatas de rua sem muita vontade de partir. Inscreve-se na Ordem dos Advogados, obtém cédula profissional e abre banca de advogado na comarca de Leiria.
Entre os anos de 1960 a 1980 formou sociedade com o filho, Afonso de Oliveira e Sousa, que fizera em Coimbra o liceu e a FD/UC, com escritório num prédio de família na Rua dos Combatentes da Grande Guerra.
Nos dias escaldantes de 1975 houve quem dissesse sem provas que Afonso de Sousa era dono dessa rua e de meia Leiria, um rumor infundamentado que confundia o património imobiliário dos Sousa com expropriações efetuadas pelo governo provisório da República em 1910-1911.
II - Um antigo cultor informado e um cidadão empenhado na causa da Canção de Coimbra
É agora tempo de entramos na contextualização e compreensão do pensamento souziano naquilo que tem de mais original em matéria de contribuição para o património da Canção de Coimbra.
Afonso de Sousa tinha plena consciência da rutura estética operada na segunda metade da década de 1920 pelos jovens do seu círculo cultural. Nos anos cinquenta, mais amadurecido e depois de visitar museus de referência internacional e compreender melhor os movimentos que tinham liderado a introdução do primeiro modernismo no campo das belas artes, Afonso de Sousa sentiu que tinha chegado a hora de prestar testemunho.
Afonso de Sousa não teoriza o primeiro modernismo da Canção de Coimbra como músico ou filósofo. Chega lá pela porta da história da literatura e da história da arte. Era um homem ilustrado em história da arquitetura, da pintura e da escultura e foi com essa utensilagem mental que apercebeu e teorizou questões densas como a importância do léxico, as identidades dos géneros musicais, os movimentos artísticos, a produção e popularização de repertórios, os comportamentos dos públicos e o papel da indústria fonográfica, sem descurar a consciência do valor dos testemunhos orais para a construção da memória.
A escrita de Afonso de Sousa no após segunda guerra mundial constitui um subtil ato de resistência: a) contra a banalização do repertório legado pelos modernistas da sua geração, que graças ao coverismo das décadas de 1930-1940 fora dessorado da sua mensagem questionadora e transformadora; b) contra a insuficiência teórica e as ambiguidades discursivas que impossibilitavam uma correta compreensão do que fora o primeiro modernismo na Canção de Coimbra numa “década de ouro” povoada de pluralidades; c) contra as políticas culturais e o processo de turistificação implementado pelo Estado Novo, à luz das quais a Canção de Coimbra era vendida como subgénero do Fado; d) contra os postulados ideológicos que se tinham vindo a incorporar na Canção de Coimbra com o propósito de desconsiderar as experiências modernizantes como “entarterte musik” (Ziegler: 1938).
Uma prática corriqueira que agastava Artur Paredes e Afonso de Sousa, e que se tornou mais percetível a partir de 1946 com a emissão das serenatas radiofónicas de Coimbra, era a utilização empobrecida e discricionária de arranjos de acompanhamento compostos na década de 1920. A transumância de arranjos tornara-se uma espécie de praga no acompanhamento do repertório estrófico nos anos de entre guerras.
À semelhança do repertório do tango “vieja guardia”, as novas estróficas conimbricenses não cessavam de lembrar melodias precedentes entranhadas na outiva e no assobio. Era o repertório mais cantado, era o mais fácil de cantar, era o que mais atraía os cantores, era o menos valorizado por arranjos originais de acompanhamento e era o filão recorrentemente utilizado como argumento de autoridade para reafirmar o jogo de semelhanças/diferenças entre o Fado [de Lisboa] e o chamado “fado de Coimbra”.
Escrevemos jogo, dado que havia uma espécie de jogo tautológico de não-perguntas que de tempos a tempos os cultores da Canção de Coimbra eram convidados a jogar sem desconstrução da pertinência do perguntar. Quando perguntados pela identidade do chamado “fado de Coimbra”, os respondentes focavam-se nos chamados fados estróficos e no tenorismo (José Manuel Beato), omitindo sonetos e sonetilhos, composições de despedida dos cursos, repertório instrumental, composições com refrão bem como obras com duas ou mais partes musicais. Um reducionismo estrofístico que impossibilitava reiteradamente a exercitação hermenêutica sobre os clássicos “quis, quid, quibus auxillis, cur, quomodo” do género musical. Quando perguntados pelas semelhanças e diferenças entre o Fado [de Lisboa] e o chamado “fado de Coimbra”, os respondentes fingiam tergiversar perante uma resposta antecipadamente conhecida que consistia na reafirmação de subtis diferenças na truncatura do mesmo padrão. Aquilo a que Bourdieu designa por “debates verdadeiramente falsos ou falsamente verdadeiros” (2001, 26).
Na ótica de Artur Paredes, Afonso de Sousa, Felix Albano de Noronha, Armando Goes e D. José Pais de Almeida e Silva os arranjos de acompanhamento poderiam ser criativos mas não deveriam ser aleatórios. Faziam parte da obra a que estavam adstritos, contribuindo para a compreensão estética e auditiva de cada composição enquanto obra de arte total. Nas décadas de 1930-1940 estava vulgarizado entre os guitarristas menos inspirados a utilização empobrecida de arranjos de acompanhamento extraídos de gravações de Edmundo Bettencourt, Armando Goes e Almeida d’Eça. Na gíria local eram conhecidos por “caga-cão”. Esta situação de usura em contexto oral levava a que, por exemplo, o arranjo feito por Artur Paredes para o título Alegria dos Céus (Ó alegria dos céus) pudesse ouvir-se no acompanhamento de títulos como Fado dos Passarinhos (Passarinho da Ribeira) ou no Fado do Mar Largo (Ó mar largo, ó mar largo).
A falta de densidade teorética do género entre a afirmação do Estado Novo e o fim da segunda guerra mundial e a sistemática ausência de comparabilidade com os grandes géneros estrangeiros arriscou adiar sine die uma questão crucial. O sentimento de chegada a um fim de ciclo estético e a convicção de que era necessário implementar uma mudança de paradigma.
Entre 1927-1929 os jovens artistas que gravitaram em torno do círculo Paredes/Bettencourt/D. José Pais viveram a consciência do esgotamento do paradigma ultrarromântico, profadístico e estrofístico. Artur Paredes, Edmundo Bettencourt e Alberto de Serpa criticaram os exageros do tenorismo conimbricense, que no limite da arte pela arte era confundido com exibições de espaventosas gritarias.
Em 1957-1958 os elementos mais ativos do Coimbra Quintet voltam a sentir que tinham esgotado as capacidades de resposta do paradigma clássico. Os registos fonográficos protagonizados por Bettencourt/Paredes (1927-1928-1929) e Luiz Goes/Portugal (1957) foram percebidos como versões-criações ne varietur (Levy Baptista: 2015).
Ou se tentava fazer melhor, o que não era propriamente fácil, ou se caía no requentamento do repertório e nos exercícios de clonagem. Na ótica das elites conimbricenses mais esclarecidas e ousadas estavam abertas as portas para a emergência do paradigma pós-clássico, a Nova Canção de Coimbra. Com descompasso sopravam os desafios da mudança, quando comparados com os tempos fortes do Neorrealismo e das vanguardas do após segunda guerra.
Radicado em Leiria, Afonso de Sousa mantém-se em contato com Artur Paredes, Armando Goes, Edmundo Bettencourt e Paradela de Oliveira, por carta e por telefone. Sempre que solicitado marca presença em encontros de antigos tocadores e nos aniversários celebrativos de organismos como o Orfeon Académico e a TAUC.
Em 1939 participa na Quinzena Cultural de Coimbra em Lisboa, ao lado de Artur Paredes, Carlos Paredes, Paradela de Oliveira e Armando Goes. Um convívio que permite a Afonso de Sousa conhecer de perto as transformações ergonómicas em curso na guitarra de Coimbra, com Artur Paredes a insistir que compre uma guitarra do novo modelo, que considerava mais apropriada para concertos. Afonso de Sousa resiste por enquanto, alegando que prefere o timbre melodioso da guitarra toeira.
Em maio de 1945 participa num encontro decisivo em Coimbra com Artur Paredes, Carlos Paredes, Armando Goes, Paradela de Oliveira e Roseiro Boavida, que integrou sarau no teatro Avenida e serenata na Sé Velha. O encontro, promovido pelo Orfeon Académico, é a todos os títulos paradigmático. Deu lugar a uma das derradeiras serenatas realizadas no pórtico da Sé Velha com os intervenientes em postura ereta.
As guitarras de concerto de Artur Paredes e Carlos Paredes, com ilharga alteada, escala de vinte e dois trastos, arestas vivas a reflectir a personalidade de Artur Paredes e o design International Style, com grande volume de som, fizeram furor. Nos anos seguintes os jovens tocadores académicos de Coimbra começam a rumar às oficinas de Joaquim Grácio e de João Pedro Grácio. O mestre de violaria Raul Simões, que continua a ser visitado por Artur Paredes, não se convence que ilhargas mais altas sejam sinónimo de melhoria de som. No curto e no médio prazo Raul Simões perde uma batalha e vê diminuir a sua carteira de clientes, mas o longo prazo não deixará de lhe dar razão.
As décadas de 1940-1950 são de grande proximidade entre a família Paredes e Afonso de Sousa. Sempre que se desloca a Lisboa em trabalho, Afonso de Sousa visita o seu antigo mestre. Considerado padrinho de Carlos Paredes, Afonso de Sousa recebe a família Paredes em Leiria para férias de verão com alguma regularidade.
Os dias de veraneio são extensivos a casas de praia. Em Leiria, os convívios permitem ensaios, longas conversas e serenatas de rua, uma prática mantida por Artur Paredes/Afonso de Sousa até 1958.
Nas casas de praia, Artur Paredes descontrai e partilha com o velho amigo as suas preocupações com o futuro de Carlos Paredes, o Plenário Criminal de Lisboa, a vigilância da Pide e o pleito judicial que teve com os herdeiros de José Elyseu por conta dos direitos sobre a Balada de Coimbra.
Afonso de Sousa esforça-se por distrair o amigo, seja em tocatas de serão, seja contando piadas sobre o tenorismo de Lucas Junot, Paradela de Oliveira e António Menano, símbolos do famoso “dó de peito” que deixava os públicos em transe. Vai mesmo ao ponto de pregar partidas a Artur Paredes sobre supostos estragos nas guitarras e destruição de plantas do jardim por animais, levando o amigo ao limite da cólera, para finalmente tudo terminar numa terapêutica risota. E havia ainda lugar a graçolas sobre o estilo faiante de guitarristas como Adozindo da Providência Sousa Costa (1897-1972) e Miguel Augusto Peres de Vasconcelos.
Os sucessos do trio Artur Paredes/Carlos Paredes (ggC) e Arménio Silva (v) na Emissora Nacional empolgam Afonso de Sousa que segue religiosamente as emissões. Acompanha as confidências do amigo na fase difícil em que esfria o relacionamento com o filho. Segue o fluir dos sixties. No inverno de 1960 desloca-se à Índia com Pinho de Brojo (gC), Mário Castro (v) e os cantores Fernando Rolim e Luís Goes. Em 1960, pela última vez, o Orfeon consegue reunir em Coimbra Artur Paredes/Carlos Paredes/Afonso de Sousa (gggC), acompanhados por Arménio Silva/António Leão Ferreira Alves (vv).
O ano de 1955 ficou associado à realização de festejos dos 75 anos do Orfeon Académico. O programa integrou a edição de uma memória história, testemunhos de antigos sócios, sarau de gala no teatro Avenida e uma exposição no Museu Académico garantida por António José Soares. Muitos foram os antigos cantores, violas e guitarristas que marcaram presença em Coimbra, alguns com atividade remontante ao período da regência de António Joyce.
Afonso de Sousa escreveu um testemunho intitulado «Notícia artística de uma geração em colaboração com o Orfeon Académico», no qual começam a levedar algumas das ideias fortes do pensamento souziano: 1) a década de 1920 como um prodigioso ciclo de afirmação de talentos na galáxia sonora coimbrã, evidenciando o autor da narrativa clara consciência de que cada artista definiu um repertório e foi aclamado por públicos com diferentes padrões de receção e fruição; 2) partindo das propostas de Alberto de Serpa (Cantores e tocadores de Coimbra: 1929), eficiente exercício de diferenciação entre o património oral recebido e o novo paradigma estético-artístico assinado pelos modernistas.
Apesar de marcar presença em encontros de antigos estudantes, a distância Coimbra-Leiria e a ausência de estudos sobre a Nova Canção de Coimbra não lhe permitem compreender as propostas da Nova Balada de Coimbra e do Movimento da Trova. Afonso de Sousa não se sentiu mobilizado pelo tom panfletarista que o Movimento da Trova pouco a pouco adquiriu. Nos inícios da década de sessenta foi surpreendido com oferta dos EP gravados por Artur Paredes, que guardou com embevecimento, mas sem deixar de exprimir ao amigo que em algumas peças a guitarra apresentava uma aspereza de som que incomodava a sua sensibilidade. Juntou à sua fonoteca os dois EP gravados por Paradela de Oliveira em Madrid, que traziam uma nota de apresentação de Bettencourt, dividido entre o apreço que o cantor lhe merecia como cidadão e o desconforto perante a empedernida persistência do tenorismo paralediano.
É também no início da década de 1960 que conhece a versão gravada por Jorge Tuna sobre uma guitarrada de sua autoria, Variações de Coimbra, versão essa que saúda com entusiasmo, considerando que Tuna tinha acrescentado valor ao original registado em 1929. Em 1967 Luiz Goes envia-lhe pelo correio um exemplar autografado do LP Luiz Goes, Coimbra de ontem e de hoje, Lisboa, Columbia SPMX 5004, 1967. Afonso de Sousa fica muito sensibilizado e recebe com grande abertura e agrado as experimentações em curso. Segue-se, no fechar dos turbulentos sixties, a receção ao LP Luiz Goes, canções do mar e da vida, Lisboa, Columbia 8E 062-40015, 1969, que trazia no lado A, faixa 6, uma reabordagem vocal e instrumental de Asas Brancas. Para Afonso de Sousa, Artur Paredes e Edmundo Bettencourt fica claro que há uma segunda modernidade em curso na Canção de Coimbra, com arrojos de vanguardismo, e que Luiz Goes pode ser considerado o dileto herdeiro simbólico do património do primeiro modernismo.
A segunda metade da década de 1960 e os anos terminais do regime ditatorial representam para Afonso de Sousa a consciência da finitude. Velhos e queridos amigos que partem, casos de Armando Goes, Felix Albano de Noronha, D. José Pais, Paradela de Oliveira e Edmundo Bettencourt.
Regressa sofrido e desalentado dos funerais, esmagado pelo peso da solidão. Colabora com Divaldo Gaspar de Freitas na produção de testemunhos sobre antigos cultores da Canção de Coimbra e escreve homenagens no Boletim da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra. Comparece nos encontros de antigos estudantes de Coimbra, na qualidade de sócio da AAEC onde conta blagues mas já não toca. Manifesta a sua discordância face ao desaparecimento da prática pública da Canção de Coimbra, na Academia, na sequência da crise académica de 1969. Nos dias quatro e seis de dezembro de 1970 está presente no Colóquio sobre o Fado de Coimbra, dinamizado pelo Orfeon Académico, que reúne um leque significativo de antigos e de jovens cultores (Nunes: 2002, 59).
O encontro de 1970 é decisivo para Afonso de Sousa. É o primeiro a compreender o significado da obra produzida por Luiz Goes desde 1967. Recusa a linearidade do discurso que propõe a erradicação do legado clássico ou a sua transformação em música de intervenção. Em 1973 já tem uma ideia bastante estruturada sobre o enquadramento estético e o significado da obra de Luiz Goes. Fica inconsolável com a morte de Edmundo Bettencourt. Preocupa-se com a solidão e os padecimentos de Artur Paredes que passa sucessivamente pela viuvez e por dolorosas patologias do sistema renal.
No primeiro trimestre de 1978 os serviços de cultura e turismo da Câmara Municipal de Coimbra preparam a realização de um encontro alargado de antigos cultores que nos dias 20 e 21 de maio se traduziu num seminário e na realização de uma serenata na Sé Velha. Afonso de Sousa foi convidado a apresentar uma comunicação ao seminário.
Esperava-se de um senhor doutor na casa dos setenta e dois anos uma postura conservadora, que confirmasse o urgentismo da revivificação do género e os discursos revivalistas que estavam ao rubro na década de 1970. A CMC contava minimizar as dissidências entre adeptos e não adeptos das ruturas dos sixties. E esperava uma atitude maciça de unanimismo em torno dos valores da revivificação, patrimonialização e turistificação. O léxico utilizado pela entidade organizadora nos documentos e vertido nas notícias de imprensa não deixa dúvida quanto à postura conservadora da CMC relativamente às políticas de turistificação do chamado “fado de Coimbra”.
Afonso de Sousa reuniu escritos e apontamentos. Recordou conversas com os amigos falecidos. Edmundo Bettencourt, as leituras de Alberto de Serpa e João Falcato. Lutou contra si próprio e os seus gostos, o ultrarromantismo e o vocabulário arcaico em que aprendera a exprimir-se na juventude. Chamou à liça o que assimilara sobre os movimentos artísticos modernistas do século XX. Recordou o que lera sobre a história do Tango e as “viejas guardias”. Viu proveito na utilização de noções algo imprecisas em voga nas narrativas sobre o Tango (“edade de oro”), o Flamenco (“edade de oro”) e a Canzone Napoletana (“epoca d’oro”). Falou por telefone com Artur Paredes, cuja doença não lhe permitiu marcar presença no seminário e ouviu do amigo aquilo que lhe faltava ouvir. Que não se considerava fadista, que era um concertista de guitarra, que Bettencourt não se identificava como fadista.
Quando Afonso de Sousa tomou a palavra no auditório, dizendo elegantemente ao que ia, muitos foram os antigos cultores do género que sacudiram a pasmaceira e esbugalharam os olhos. Leu a comunicação com vivacidade, como se pleiteasse na barra e arrasou. Deixou incrédulos antigos estudantes que não perceberam com clareza a tese apresentada e recebeu a adesão imediata de vultos ligados ao segundo modernismo dos sixties como António Portugal e Luiz Goes. E explicou de forma clara e eficaz o que tinham feito os da sua geração.
A tese de Afonso de Sousa sobre a legitimidade e pertinência da Canção de Coimbra teve grande impacto nos media e junto dos agentes da indústria da cultura e do entretenimento. Gerou incredulidade e repúdios que se arrastaram até finais da centúria. Desagradou à indústria da cultura que não estava interessada em retirar do catálogo a mercadoria “fados de Coimbra”.
A análise das mercadorias em catálogo (títulos, design, alinhamento repertorial, fichas técnicas) e da publicidade correlacionada confirma que a maioria dos agentes da indústria da cultura optou por fazer silêncio sobre a tese de Afonso de Sousa e inundar o mercado com contrainformação sobre as obras fonográficas de Carlos Paredes, Luiz Goes, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira.
A visualização dos programas de espetáculos, dos fonogramas gravados entre 1978-1999 por formações seniores/juvenis e dos livros de memórias de antigos estudantes permite compreender que atores se posicionaram do lado do chamado “fado de Coimbra” e quem passou a exprimir-se no campo da Canção de Coimbra.
A intelligentsia portuguesa ligada aos campos do cinema, fotografia, dança, teatro, literatura e artes plásticas revelar-se-ia duradouramente incapaz de compreender o contributo de Afonso de Sousa. O mesmo aconteceria com as elites literárias remanescentes do Neorrealismo que continuaram perceber a Canção de Coimbra como Fado, inviabilizando a compreensão dos sixties.
Nos meios jornalísticos portugueses, o pouco que se escreveu sobre o género continuou marcado pelo não domínio de ferramentas mínimas necessárias à identificação, referenciação e contextualização do género em causa. João Aurélio Sansão Coelho (n. 1949), que fez a transição do Emissor Regional para a RDP/Centro e presenças na RTP, publicidade, apresentação de espetáculos e moderação de jornadas parece constituir um caso de exceção no domínio contextualizado do género.
A CMC adotou uma atitude marcada pela ambiguidade. Até 1983 promoveu cinco seminários, dinamizou exposições, publicou trabalhos de Afonso de Sousa e Francisco Faria e abriu uma escola municipal de formação de guitarristas e cantores (Escola do Chiado: 1978-1990).
António Portugal passou a utilizar definitivamente a expressão Canção de Coimbra, fazendo questão de justificar a sua opção nos palcos portugueses e estrangeiros. Os públicos e os promotores de eventos nem sempre compreendiam os motivos, mas respeitavam a posição de António Portugal. A investigadora em etnomusicologia Salwa Castelo-Branco, da FCSH/UNL, considera que as conversas que manteve com António Portugal foram decisivas para a aceitação da expressão Canção de Coimbra no meio universitário. O docente e investigador da FL/UP Armando Luís de Carvalho Homem afirmar-se-ia desde meados da década de 1990 como o autor que escreveu com mais substância e conhecimento contextualizado sobre o género, fazendo emprego desenvolto da expressão Canção de Coimbra. Na RDP-Centro o jornalista João Aurélio Sansão Coelho foi ao longo da década de 1980 um persistente paladino da expressão.
No aro temporal balizado entre 1978-1983, a CMC e a Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra mantiveram inalterada a designação dos seminários. Avaliando a pouca documentação disponível e cruzando-a com testemunhos orais, o predomínio das comunicações baseadas em histórias de vida contrastou com a escassez de trabalhos de investigação, permitindo divisar os crescentes impasses em que os seminários foram caindo.
Não foram publicadas atas das comunicações, discussões e recomendações apresentadas nos cinco encontros. A partir de 1983 a CMC desinvestiu nos encontros e na promoção de estudos. Nas tertúlias informais foram discutidos argumentos justificativos desta posição como as mudanças políticas na equipa dirigente, os desentendimentos entre antigos estudantes presentes nos seminários e a desnecessidade de investimento uma vez que na AAC fora criada em 1980 uma seção cultural orientada para a promoção do mesmo objeto.
A CMC nunca se exprimiu oficialmente sobre a questão. O ambiente tornara-se pouco propício a novos encontros. Havia antigos estudantes de relações cortadas e circulavam rumores sobre má gestão de documentos particulares que tinham sido emprestados para exposições ou reprodução de cópias.
Em 1988-1989 Afonso de Sousa mantinha uma atividade residual no escritório de advogado, tendo passado ao filho a responsabilidade dos processos. Sentia-se desolado com os silêncios da CMC, conforme exprimiu em carta endereçada à viúva de Edmundo Bettencourt em 1984. Desmotivou-se relativamente a um projeto de estudo sobre o contexto de produção e significado dos sonetos no âmbito do primeiro modernismo da Canção de Coimbra. Gostava de se sentar com a guitarra ao colo, mas a mão direita já não conseguia percorrer as cordas com firmeza. Ocupou-se com a revisão e reedição de alguns trabalhos na Coimbra Editora. Entretanto, esperava que lhe fossem devolvidos documentos que emprestara na primeira metade da década para reprodução. Pouco a pouco percebeu que a Escola do Chiado tinha uma natureza formativa prática e que não haveria lugar a programas de publicação de biografias, recolhas de testemunhos orais ou migração de velhas fontes sonoras para novos suportes. Acalentou até ao fim esperança na reedição da obra integral de Artur Paredes.
Teve a intuição lúcida de que os silêncios e ambiguidades da CMC significavam desconforto com a questão da Canção de Coimbra e que num futuro não muito distante o chamado “fado de Coimbra” regressaria às narrativas pautadas pela mercadorização e turistificação do género. Os tempos eram de colapso da modernidade e de revisionismo da herança emancipatória mais emblemática da Ilustração.
Empenhou-se ainda em completar a oferta de bens ao Museu Académico de Coimbra (MAC). Em novembro de 1989 deu entrada no MAC uma sua guitarra dos anos de juventude, que se foi juntar a fotografias e a uma guitarra ofertada por Artur Paredes, ali depositada por direta mediação de Afonso de Sousa, e procedeu-se à recolocação de uma réplica da lápide de homenagem a Edmundo Bettencourt num prédio onde habitara junto à Sé Velha.
A carta enviada à Valentim de Carvalho a propor a reedição de Artur Paredes, mesmo que fosse com recurso a fonogramas de colecionadores particulares, ficou sem resposta. Galante e cortês que era, Afonso de Sousa em vão esperou que a direção-geral da AAC lhe agradecesse a oferta da guitarra ao MAC. Os tempos tinham mudado e as regras de etiqueta também.
As modas que correm são de revisionismo da memória, de mercadorização, turistificação e distinção pelo uso massivo do recesso. O requentado é bom, não cessam de proclamar os públicos e o considerável volume de negócios em torno dos repertórios mediáticos de Manuel Branquinho ou Machado Soares (Bourdieu: 1979; Sontag: 1987; Sconce: 1995; Thornton: 1995; Castellano: 2011).
Como interpretar a euforia em torno do fim da história do chamado “fado de Coimbra” que teria como ferramentas de comunicação imediata a exploração capitalista, o fusionismo, a refadistização, a comercialização maciça de produtos low cost e as políticas de musealização como instrumentos de poder simbólico?
Vale sempre a pena refletir os reducionismos e trazer à mesa da tertúlia a discussão sobre os usos da história/memória (Ferro: 1981), os limites da hipermodernidade e da civilização do ligeiro (Lipovetsky: 2016), a liquefação dos referentes (Bauman: 2001), o parentesco fantasmático (Eiguer: 1995), a consciência do investigador (Torgal: 2014) e a revolta contra os discursos emancipatórios herdados da Aufklarung (Feuchtwanger: 1950).
Globalização e neoliberalismo desregulado não rimam bem com Canção de Coimbra. Afonso de Sousa pleiteou no campo das elites, contra a implosão estética, o mercado do coverismo e a distinção pelo trash, sabendo que militara num pequeno círculo elitista que não se podia considerar representante do gosto comum dos cultores do género nem dos seus públicos.
Uma bandeira difícil de hastear, que depois da morte de Afonso de Sousa (1993) e de Luiz Goes (2012) vem sendo simbolicamente desfraldada por Jorge Cravo. E um currículo difícil de contraditar. Em trinta e oito anos apareceram protestos circunstanciais mas não há conhecimento de nenhuma tese que de forma densa tenha invalidado as linhas de força da palestra apresentada em maio de 1978.
1.Composições de que é autor:
ASAS BRANCAS (Quando era pequenino a desventura), música e letra
DESALENTO (Quando eu morrer, rosas brancas), música e letra
MIMOSA (Os teus dedos jardineiros), só a letra
SAUDADES DE COMBRA, op. instrumental para guitarra de Coimbra
TEMAS TRISTES, op. instrumental para guitarra de Coimbra
VARIAÇÕES DE COIMBRA, op. instrumental para guitarra de Coimbra
VARIAÇÕES EM LÁ MENOR, op. instrumental para guitarra de Coimbra
2.Composições que lhe são erradamente atribuídas
ROSAS BRANCAS (Quando eu morrer, rosas brancas), composição de autor não identificado, possivelmente de Felisberto Passos, gravada pela primeira vez na década de 1950 por João Maria Tudella. Trata-se de confusão com o título DESALENTO, gravado por Almeida d’Eça e Raul Dinis.
3.Registos fonográficos em que participou
Gravações de Afonso de Sousa/Columbia, 1929: [Variações sobre o] Fado Liró, música de Nicolino Milano, violão por Laurénio da Silva Tavares, editado; Variações de Coimbra , música de Afonso de Sousa, violão por Laurénio da Silva Tavares, editado. Restantes obras instrumentais gravadas, mas não editadas.
Gravações de peças instrumentais para guitarra de Coimbra de Felix Albano de Noronha/Columbia: duas séries não comercializadas (1929), viola de acompanhamento de Laurénio da Silva Tavares.
4.Publicações de Afonso de Sousa
- Farrapos (1928), poemas.
- Quadras, poemas.
- «Breve notícia de uma geração artística em colaboração com o Orfeon Académico», in Bodas de Diamante do Orfeon Académico, 1880-1955. Coimbra: 1955, pp. 93-109.
- Frustração (1959), sonetos.
- Como eu vi alguns museus da Europa, síntese de emoções estéticas (1962).
- Roteiros subjetivos da minha terra (1964), sonetos.
- Sarça ardente e outras sarças (1965), novelas.
– «Coimbra do nosso tempo, cruzes de caídos, in memoriam de Armando do Carmo Goes, Albano de Noronha e D. José Pais de Almeida e Silva», Boletim da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, n.º 9, dezembro de 1969, 7-13, escrito em janeiro de 1969.
- «Ronda pelo passado, à memória do Dr. José Paradela de Oliveira», in Boletim da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, n.º 10, dezembro de 1970, 35-40, escrito em setembro de 1970.
- Antigas e novas civilizações, o Egito, o Brasil (1971).
– Do Choupal até à Lapa, recordações de um antigo estudante de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1973 [2.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 1988] contendo a primeira parte uma longa e sentida evocação constituída pelas rubricas «Breve notícia de uma geração artística em colaboração com o Orfeon Académico de Coimbra» (1955), «Cruzes de caídos» (1968-1969), «Ronda pelo passado» (1970), e «Roteiro alegre de uma excursão às índias portuguesas» [1960] (1961).
- O canto e a guitarra na década de oiro da Academia de Coimbra (1920-1930). Coimbra: Edição da Comissão Municipal de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra, 1981 [2.ª edição, Coimbra Editora, 1986].
- Breve cancioneiro de Coimbra e outras trovas (1983).
- Ronda pelo passado, memórias de um antigo estudante do Liceu Rodrigues Lobo, em Leiria, e da Fac. de Direito da Univ. de Coimbra, 1915 a 1930. Coimbra: Edição do Autor, 1989.
5.Referências
CARVAS, Amparo; CASEIRO, Virgílio – «Sousa, Afonso», in Enciclopédia da Música em Portugal no século XX/P-Z, Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2010, p. 1232.
6.Datas importantes
1927: gravações com Armando Goes e Artur Paredes.
1928: gravações com Edmundo Bettencourt.
1929: gravações com Almeida d’Eça; gravações como solista de repertório próprio; gravações com Felix Albano de Noronha na Columbia (não editadas).
Outubro de 1929: atuação da Feira Ibero-Americana de Sevilha com António Menano, Artur Paredes (gC), Guilherme Barbosa (v), estando presente Afonso XIII.
Maio de 1945: serenata da Sé Velha, 45.º aniversário do Orfeon Académico, atuação com Artur Paredes, Carlos Paredes, Arménio Silva, Armando Goes, Paradela de Oliveira e Roseiro Boavida.
1960: sarau no teatro Avenida, 80.º aniversário do Orfeon Académico, com Artur Paredes/Carlos Paredes/Afonso de Sousa (gggC), Arménio Silva/António Ferreira Alves (vv).
Dezembro 1960: atuação na Índia Portuguesa com Pinho de Brojo, Mário Castro, Fernando Rolim, Luiz Goes.
20 e 21 de maio de 1978: tese sobre a autonomia da Canção de Coimbra, 1.º Seminário do Fado de Coimbra.
1972: Divaldo Gaspar de Freitas publica a obra Emudecem rouxinóis do Mondego, que contou com expressiva colaboração de Afonso de Sousa.
Maio de 1979: comunicação sobre «Uma guitarra: Artur Paredes», 2.º Seminário do Fado de Coimbra.
Setembro de 1999: testemunhos e documentos de Afonso de Sousa, recolhidos em 1988-1989 e em 1998 são extensivamente utilizados na obra No rasto de Edmundo de Bettencourt.
Doc. 1: caricatura de Afonso de Sousa por Cerdeira na reta final do curso (FD/UC).
Doc. 2: cartão de sócio da TAUC, prenchido em 18.11.1952, por altura da organização do arquivo da instituição. Arquivo da TAUC, digitalização de José Nascimento.