O toque de Deus e seus prodígios
Carlos Lopes Pires
A Poesia é uma coisa demasiado
importante para se confundir com literatura
Zetho Cunha Gonçalves
A arte de Fúlvio Capurso tem o toque de Deus. Uma arte de simplicidade. Como se o espírito de uma criança ali pairasse. No livro “a minha poesia é uma ignorância” chamei a pessoas assim “crianças da chuva”. Trate-se de ilustrações ou de esculturas, sobretudo, as que chamaria eco-esculturas, constatamos esse efeito, que designo de multiplicação. Uma arte de simplicidade, ingenuidade, elevação. Uma arte que não precisa de palavras, explicações ou definições: têm o toque de Deus, e quem está disponível poderá senti-lo. Não precisa de palavras, dizia eu. E diria mais: têm o efeito de provocar mudez, pois estabelecem-se através de um sentimento que trava as palavras e nos deixa com as palavras que nos faltam. Porque dizer que um poema é feito com palavras é idêntico a dizer que um desenho ou ilustração de Fúlvio foram feitos com lápis ou canetas, ou qualquer outro instrumento de pintar ou desenhar. O toque de Deus preside às suas criações.
Digo que um poema é, antes de tudo, uma experiência espiritual. Fora disto estaremos sempre a falar de poesia de entretenimento, de fingimento, a que também tenho chamado poesia com literatura. E quando falo em “o toque de Deus”, pretendo significar o prodígio de alguém ter essa experiência espiritual. E tal experiência pode realizar-se de vários modos, nomeadamente no que se tem chamado arte, incluindo a própria experiência da arte. Na verdade, talvez o que costuma designar-se poeticidade se refira a isso mesmo. Pois eu chamo-lhe o toque de Deus, a experiência espiritual, a multiplicação de si por todos e tudo. Que é uma elevação e expansão, que não deixa de ser, igualmente, um alargamento interior. A verdade de um poema está no sentimento de multiplicação que ele provoca ou evoca. Mas tal sucede porque ele é, desde logo e acima de tudo, essa multiplicação.
Repito que um poema é uma experiência espiritual. Não sei se foi sempre assim. Creio que não, embora sempre tenha havido poetas caminhando nesta direcção. Estou convencido de que os poemas serão cada vez mais uma experiência espiritual, e que é nesse sentido que o “ser humano”, isto é, aquele que ainda não é, se orientará cada vez mais. E é por isso que vou dizer uma outra coisa, talvez chocante para alguém: para um poeta a erudição, em si, é uma limitação. Um poeta não precisa de coisas eruditas. Do que precisa é do que a elas presidiu. O importante não é a sua representação no mundo das aparências, mas o que lhe deu origem. A erudição, em si, é uma repetição. Ora, o que lhe deu origem já está nos poemas, pois nenhum poeta escreve a partir de nada, mas sim a partir de todos os nomes do mundo, que é uma outra maneira de nomear a abundância. Muitos são os que evocam uma e outra vez imagens, nomes, ideias que assinalam a sua erudição. Não entendo: para que importa a um poeta os clássicos, ou os modernos, se não estiverem já nos seus poemas, nas suas palavras? Um poema, cada poema, transporta a humanidade inteira e a possibilidade desta se tornar uma verdade. E se já o faz no coração dos poemas, para que há de repetir-se numa parte de fora? Se não o faz no coração, nenhuma evocação erudita o salvará da repetição vazia.
Do mesmo modo, um
pássaro não voa para que lhe chamem pássaro, nem voa para que outros o vejam
voar. Voa porque sim. Assim é que um poema não é feito de imagens mais ou menos
fortes, ou do que seja. Um poema, já o disse, está nas palavras que faltam. E
as palavras que faltam são uma desmedida da ausência, da abundância. Permitam-me
ser claro: vários são os nomes pelos quais se pode nomear a espiritualidade. Há
quem diga que os poemas dizem o indizível. Dizer isto é meio caminho. O poema
traz o toque de Deus, a multiplicação existencial. Quer dizer, o espírito do
mundo. Indizível porque não vemos, não tocamos. Somos existencialmente cegos. E
isso é o que está nas palavras que faltam.
E cada
poema revela o vulto do meu próximo, o rosto daquele que caminha na minha vida,
ainda que possa ser ausente, estrangeiro ou em falta. Portanto, um poema tem
ética e desenha um desígnio, uma direcção. Os
poemas podem salvar-nos da indiferença, embora um poema não seja uma encomenda
de prestígio. Um poema é um prodígio, um afastamento, uma divergência. Não, um
poema não é feito com palavras, nem é feito com silêncio. Não, não é. Um poema
é constituído por palavras ausentes, as palavras que faltam. Por isso um poema
é igualmente uma falta. Ou melhor, um poema revela a ausência daquele que anda
lá fora na noite escura e chove. E eis o prodígio: esta ausência revela a
presença daquele que é em nós desde sempre.
E se digo que um poema é, antes de
tudo, uma experiência espiritual, é porque me atrevo a dizer que é aí que está
a sua origem, o seu princípio. E se me atrevo a afirmar que um poema não é
escrito com palavras, é porque pretendo diferenciar a palavra poética da
palavra comum. Embora todas as palavras tenham origem nessa noite, nessa
realidade que nos escapa, as palavras comuns são elaboradas na realidade ou
mundo das aparências. E desejo esclarecer que o que digo não significa que os
poemas não são palavras, pois eu não creio em coisas como “poesia visual”
(entre outras). Na verdade, eu penso que um poema é sempre feito com palavras,
só que as palavras que lá estão falam-nos das palavras que faltam, essas que
nos trazem a experiência espiritual. Num comentário, que considero muito feliz,
Luís Vieira da Mota escreveu, no facebook, mais ou menos, o seguinte: a profundidade dos poemas não está nas suas
palavras, mas nos intervalos entre as palavras. Tão belo comentário só pode
vir de alguém que compreendeu ser a poesia outra coisa.
E o que os poemas dizem é o que vem
através dessa experiência espiritual. Mas os poemas são, também, essa
experiência, que é igualmente de infinito, de ausência, de abundância. Se as
palavras podem ser usadas para comunicar, numa dada comunidade, é porque têm
uma dimensão de intersubjectividade, embora não possam, nunca, deixar de ser
relativas a uma determinada experiência de existir, que é sempre única e
peculiar em cada um. Existir é uma experiência incomunicável. Além do mais,
existir implica ser mais-que-uma-coisa. Existir é, em si, já uma
transcendência.
Sim, é verdade que digo que os meus poemas não são literatura. E que me intitulo poeta da ignorância, poeta de província e até poeta clandestino. Coisas que não são exactamente o mesmo. Contudo, todos estes nomes enraízam o substantivo de afirmar que escrevo poemas sem literatura. É que, querida amiga Graça Sampaio, fujo dessa gente como o diabo da cruz. Não é o seu caso, mas há quem se zangue por eu não gostar de literatura. No entanto, eu também não gosto de guerras nem de desculpas para os que lucram com a miséria dos outros. E assim há muito que fiz um pacto com os meus poemas: o de nunca nos mentirmos.
Que um poema tem a sua raiz numa
experiência espiritual, que também já tenho designado epifânica. Esta
experiência dá-se fora do tempo e espaço cotidianos, fora da realidade das
aparências. A poesia literária, hoje dominante e preferida do sistema de
criação do prestígio e notoriedade, pelo contrário, faz-se ao nível da
descrição da realidade cotidiana. É como tirar uma fotografia e, depois,
descrever o que lá está recorrendo a palavras menos comuns, trocar a sua ordem,
intensificar as adjectivações, ou recorrendo a figuras mitológicas que,
eventualmente, multiplicam as possíveis interpretações do texto e parecem
dar-lhe profundidade. Pessoas cultas e com leitura abundante, no domínio da
poesia com literatura, deixam-se levar por este truque, que é um disfarce da
banalidade. A banalidade, é claro, conduz à banalização. E na banalização não
pode haver profundidade. A banalidade é plana. Disse-me a Isabel Soares que
certamente as pessoas não escrevem com consciência de truque. Mas agora e aqui
acrescento, correndo o risco de que alguém possa achar-me petulante, que
pessoas banais só podem fazer coisas banais. Porque para fazerem coisas
elevadas teriam de se enganar, e as pessoas banais não se enganam.
De qualquer modo, profundidade é quando
nos inclinamos para um plano sem fundo. Ora, a profundidade só pode ser dada
pelas palavras que faltam. E o que falta na dita fotografia? Justamente o que
lá não está. Sim, eu sei que parece uma redundância. Mas o que falta é o que os
olhos não veem e os ouvidos não podem escutar. Falta o sentimento e faltam as
pessoas e coisas que não aparecem na fotografia. Faltam as vozes, os movimentos
que povoaram no mundo a sua presença. Por isso, sim, muito por isso digo que um
poema é as palavras que não estão no poema. Por isso, sim, muito por isso digo
que um poeta deve ser como um pobre à maneira de Rilke: os pobres são simples e
despojados de aparências. Um poema é uma existência frugal. Um olhar pobre
sobre o mundo. Um poema não precisa de adjectivos cosméticos, pois ele é
iluminado por dentro e por toda a luz que os olhos não podem ver. Sou mais uma
vez claro: a poesia com literatura é uma cosmética.
E sim, é verdade que digo que nos meus
poemas não há metáforas, imagens ou outras ditas figuras de estilo. Algumas
pessoas zangam-se comigo, outras julgam que é um truque para me fazer notar.
Mas, pensem bem: notar por quem, se caminho para um inverno onde só estão os
amigos? Por isso, pensei aproveitar estes minutos para explicar, talvez melhor,
o que tenho vindo a dizer. E vou falar em metáforas, considerando vários
aspectos, nelas englobando todas as chamadas figuras de estilo. E para ser o
mais claro possível vou falar por pontos, que devem ser considerados, no
entanto, todos simultaneamente:
1. As metáforas são conceitos descritivos, não tratam da realidade. As descrições não têm poder explicativo. A palavra pássaro não explica nenhum pássaro. Possibilita é que cada um de nós saiba a que tipo de coisa nos referimos. Com efeito, quando digo “é um pássaro” não estou a definir uma realidade, ela mesma. Estou, simplesmente, a acrescentar um elemento na grande ilusão do mundo humano. E quando digo “isto é uma metáfora” crio a ilusão de estar a identificar, ou até explicar, um elemento da realidade. A classificação é um olhar abstracto. Os poemas existiriam sempre sem o conceito metáfora. E se os pássaros são anjos, como podem ser explicados?
2.
A utilização das metáforas, como um fim
em si mesmo, conduz às aparências, essa estranha convicção de que o que parece
é. Gerações e gerações de solipsistas têm coleccionado metáforas, confundindo
imaginação com tropeções entre palavras. Que isso que chamam de imaginação
ainda está por ser entendido.
3.
Então uma metáfora não pode tratar da
representação da realidade, como muita gente parece crer. Por isso, o acreditar
que as metáforas definem a natureza e qualidade dos poemas, é não ter
compreendido o essencial. Repito: um poema é feito com o que lá falta. Não com
metáforas.
4.
Sejamos claros, desde há muito que a
poesia da literatura se afundou no charco das redundâncias e da iniquidade. A
falta de talento foi substituída pela proliferação de metáforas, e outros
arranjinhos, como dizer que um poema é um
cão a latir lá fora… A poesia com literatura é isto: uma repetida vulgaridade.
Aquele sentido pejorativo que, frequentemente, se encontra quando alguém se
refere aos poetas ou à poesia, está, pois, certo, pois é naquilo que se tornou
a poesia da literatura. Uma completa vacuidade. Perdoem-me o que vou dizer,
pois ao menos sou sincero e autêntico: como podem pessoas banais fazer coisas
que não sejam banais?
5.
É que as chamadas metáforas são sobre
alguma coisa, realmente. Mas não é por serem metáforas, é porque o mundo, a
existência, o cosmos, a realidade, nos transcendem. E assim é toda a vida
humana, a linguagem e o pensamento. As metáforas não representam a realidade:
elas são a realidade das aparências. Mas os poemas são o que talvez há de mais
próximo com a realidade. Essa para a qual há muito ficámos cegos. É que as
coisas estão ao contrário: o mundo, como o definimos, o mundo humano, é que é
de aparências feito. Afinal, o mundo é uma metáfora. A realidade é justamente
aquela que não vemos. Verdadeiramente, a realidade social, cultural, cotidiana
é que é metafórica. Os poemas, que são sobre o que falta, são o que mais
próximo temos da realidade.
6.
Num comentário, no facebook, a Isabel
Soares disse-me o seguinte: Contudo, sem
precisares de recorrer à adjectivação, também tu transferes, por vezes, o nome
de uma coisa para outra relacionando-as, comparando-as. O que chamas a isso?
Metáfora. - dirão os entendidos. Sim,
confesso. Mas é que essa espécie de analogia entre as coisas não é, realmente,
uma analogia. Ela é real, no sentido em que é verdadeira. As coisas são uma só coisa.
E há uma verdade que as atravessa e em todas permanece. As metáforas (e as
analogias) pertencem ao mundo das aparências e, de algum modo, parecem esconder
o grande sentimento que nos conduz a todos pela vida. Há uns tempos, numa volta
de bicicleta cruzei-me com um pássaro morto na estrada. Esse encontro suscitou
o seguinte poema, aliás mentalmente escrito durante a viagem:
encontrei um pássaro
partido no chão
mas não era o pássaro
era eu
então
peguei nas suas asas
e depois no coração
mas não era o dele
era o meu
Tudo o que é dito é verdade. É que
“partido”, por exemplo, designa um sentimento. Esse sentimento é do universo, é
cósmico, é da realidade ela mesma. A analogia, as metáforas e etc designam
conceitos para dar congruência à realidade das aparências. Mas há uma realidade
na noite que nenhuma mão alcança. Essa realidade para a qual desde há muito
estamos cegos. Sim, desde há muito que estamos cegos e não sabemos. Sim, não é
uma analogia: os sentimentos realmente partem-se. Por exemplo, eu tive um gato,
e quando ele faleceu partiram-se-me as mãos, as palavras e os olhos.
Há cerca de 30 anos o Prof. Manuel Frias Martins propôs o conceito de “matéria negra” para se referir à fonte onde os artistas, em geral, vão buscar a matéria para fundar as suas obras. A sua inspiração. Manuel Frias Martins criou a expressão em analogia com a “matéria negra” da astrofísica. Lembro que esta matéria negra ocupa parte significativa do universo, mas é indetectável. E a analogia é tão forte que poderemos perguntar-nos, hoje, se é uma analogia. Talvez, no fundo, não o seja. Talvez seja o infinito e então o infinito esteja aqui. Imaginem, simplesmente, que tempo e espaço são criações humanas, como é a astrofísica, e todas as ciências. Imaginem, simplesmente imaginem, sem se zangarem comigo, que tempo e espaço poderão ser outra coisa, que não espaço ou tempo. Imaginem, simplesmente, que todos os espaços e tempos estão aqui. Porque não há antes nem depois. Nos poemas chamo-lhe ausência, ausência sem fim. Mas o que é verdadeiramente importante, para mim, é a conclusão que tiro: a raiz dos poemas está aí, nessa abertura para o infinito. Quem quiser poderá chamar-lhe Deus. Não me importo nada. O que quer que seja é demasiado grande para cultivar a mesquinhez. E esse gesto, que é também uma inclinação, é a espiritualidade.
Considerar um poema a partir das metáforas, e outras figuras de estilo, é considerá-lo a partir do lado de fora, da sua aparência. Mas um poema é uma existência espiritual. Os académicos e os críticos, em geral, lamento dizê-lo, mas estão muito longe de compreender o que é um poema. Será necessário um tempo, que já não será o nosso. Hão de passar gerações para que os homens aprendam alguma coisa sobre o seu lugar no cosmos. Só então, os famintos, poderão realmente compreender a natureza de um poema. O que é, realmente, um poema. Famintos? Perguntam. Mas o que são famintos? Famintos somos nós, “os das flores”, os que estamos aqui e muitos outros que há pelo mundo e que anseiam parecer-se com as estrelas.
Mas por agora vê-se muito mal no lado de fora.
É por isso que voltarei, ainda, à pobreza de Rilke. Pobreza como despojamento,
como simplicidade. Alguém que risca na tarde o seu nome e depois o entrega à
água.
E quase a terminar, desejo confessar-vos que quanto acabo de dizer não deve ser entendido como uma tentativa de fixar um sentido para os meus poemas. É que este texto, e todos os textos que tenho escrito sobre poemas, são meramente não-poemas. Isto é, devem ser entendidos como fazendo parte do mesmo imaginário. São variações em redor dos poemas. Não são ensaios. Não pretendem catequizar.
Ainda vos quero dizer que não vejo os
poemas como tristeza, melancolia ou desespero. Os poemas são uma coisa feliz.
Mesmo quando respeitam a desgraças, ainda assim são felizes, pois são sempre uma
iluminação, uma criança descalça que olha o mundo. Não partilho aquele perfil
dos poetas como pessoas ébrias, melancólicas, boémias e dadas a estados
depressivos. Os poemas salvam, elevam, transformam, multiplicam. Os poemas têm
o toque de Deus. O poeta é aquele que vezes sem conta se inclina no seu próprio
nome. O poeta é um animal improvavelmente iluminado.
eu cresci numa
árvore
de onde vi o
mundo acontecer
como se fosse
a minha vida
havia tardes
em que tudo
ardia à minha
volta
mas nunca na
árvore
onde cresci
e assim
aprendi dos pássaros
as estações e
a brevidade
do voo
e o que
outros
chamaram
poesia
era o mundo visto
do cimo de
uma árvore
porque foi
uma coisa de magia
uma coisa de
nunca tirar
do coração
o ter
crescido numa árvore