CARTA
DE OUTONO
Pensarás
que não te escrevi antes porque o verão
consome
a energia da alma com um apetite solar; e
porque
as tempestades do crepúsculo incendiaram as
palavras
com o rápido fogo aéreo. No entanto, eu
ouço
aquelas aves que gastaram as asas na travessia
do
Espírito, cujos olhos viram o que havia de duvidoso
nas
traseiras do invisível, onde um deus culpado
se
esconde e se ouvem as vozes sem nexo dos
anjo
enlouquecidos. Essas aves deixaram de saber voar,
agarram-se
aos ramos dos arbustos e, ao fim da tarde,
gritam
em direção às nuvens com os olhos secos e
sem
medo. Abri-lhes o peito: e encontrei as entranhas
verdes
como as folhas perenes do norte. Então,
ouço-te
bater por dentro de mim, embora estejas morto;
e
os teus dedos tenham perdido a força antiga que
desafiava
a sombra. Procuro uma entrada no átrio
desabrigado da página; avanço entre sílabas e versos
perdendo-me
do silêncio na insistência dos passos.
O
passado é todo o dia de ontem; a vida coube-me
neste
bolso do infinito onde guardei os últimos cigarros;
o
teu amor gastou-se com um breve brilho de
isqueiro.
Saio sem desejo dos desertos de outubro
e
novembro, arrastando o outono com os pés, nas planícies
provisórias
de um esquecimento de estações.
Nuno Júdice
Poemas
em voz alta (p.22)
Dito
por Natalia Luiza
Ed.
Presença, 1996